ANO 2003 - OS CARTÓRIOS FORAM EXTINTOS.

 

S A I B A M quantos este "Instrumento Particular de Comodato" virem que, pela melhor forma de direito, aos 15 (quinze) dias do mês janeiro do ano 2003 (dois mil e três), contrataram-se mutuamente, de um lado, como outorgante...

 

Estamos em 2003, completa-se hoje (15 de janeiro) doze meses de vigência da Lei nº XXX/2001, editada em 15/01/2001. Transcorreu-se um ano entre o decreto e sua efetiva vigência, para a adequação da nova ordem, quer seja: a "Extinção dos Cartórios Extrajudiciais no Brasil".

Por ocasião da solenidade inaugural houve o lançamento do selo postal e envelope comemorativos, com a presença do ilustre Secretário da UPU - "União Postal Universal", para a América Latina, bem como a presença do Ministro da Desburocratização, que celebraram o "primeiro Instrumento Particular oficial": um Contrato de Comodato, pelo qual o representante da UPU, graciosa e simbolicamente, emprestou ao senhor ministro uma pinça filatélica banhada a ouro.

O Estado, no compasso da lei, atribuiu ao IBGE a responsabilidade pelos registros dos nascimentos, casamentos, óbitos e outros acontecimentos concernentes às pessoas naturais; as prefeituras municipais incumbiram-se dos registros de imóveis, dos títulos transmissivos de domínio, de gravames e de documentos em geral, com a conseqüente microfilmagem de tudo o que havia sido produzido. Diversas bibliotecas foram transportadas para os fóruns centrais, que encarregar-se-ão da expedição de certidões. As Juntas Comerciais, presentemente, além de zelarem pelos assuntos do comércio, arquivarão os instrumentos contratuais atinentes à criação, transformação e extinção de pessoas jurídicas. Não há mais o instituto do Protesto: os títulos de créditos são sumariamente processados em cartórios judiciais e, num prazo máximo de cinco dias, os inadimplentes são compelidos a quitar suas dívidas, depositando os valores em bancos estaduais.

Não obstante, face a importância das demais serventias extrajudiciais (mal vistas e ridicularizadas pelos veículos de comunicação), o que nos leva a escrever estas linhas é o fato concreto de, igualmente, não mais existirem as Serventias Notariais (ou Tabelionatos de Notas).

Este escriba, que tantas pessoas ouviu, que tantas notas e declarações redigiu; que esclareceu e orientou, sendo por vezes o confidente e conselheiro; que, dando forma aos anseios e vontade das partes, emprestou-lhes a "fé-pública" delegada pelo Estado (para que o ato jurídico permanecesse inconteste, perfeito e acabado), agora nada mais tem que o fraco som do lema dos notários, ecoando nos escaninhos vazios dos birrôs e arquivos: "Lex est quodcumque Notamus".

 

Da mesma forma o Relógio Solar, símbolo dos notários, por marcar a hora verdadeira, que era um farol a orientar, conduzindo e levando à segurança, agora jaz, inerte, sem sol, sem luz.

Triste trópico. Faço minhas malas. Tenho tinta correndo nas veias e preciso fazer uma sangria urgente: vou tomar notas em outro país: serei um estrangeiro mas não abdicarei do meu ofício. Parto logo, mas não ab intestato, pois tenho que lavrar (e assinar) o que vi, mas não precisarei de cinco testemunhas. O que presenciei está acontecendo em um outro lugar deste Brasil afora. Cada cidadão tem um fato para narrar ou é ele próprio o sujeito da ação. Somos testemunhas vivas do caos que se instaurou após a extinção dos cartórios extrajudiciais.

 

"Estava eu a flanar nas proximidades do Tabelionato, no qual, orgulhosamente, durante quinze anos, exerci meu ofício (costumava ir à pé ao trabalho), quando deparei-me com um rapaz bem novo, instalado debaixo de um guarda-sol de praia, sob o qual encontrava-se algumas caixas de bacalhau perfeitamente empilhadas, de modo que criou-se uma espécie de "gaveteiro-arquivo". Seria imprudente atribuir-lhe mais do que dezesseis anos, entretanto, bem sofridos: via-se na sua figura. O pobre era um misto de "flanelinha-vendedor de fichas telefônicas-cartões de zona azul e dublê de escrevente".

(Segue-se o diálogo que se travou entre ele e um motorista que estacionara seu carro no local):

- Bom dia chefia! Posso bater uma água? Vai um cartão?!

- Não! ... Conhece alguma papelaria na redondeza?

- Sei não senhor. Está precisando de uns formulários?..., aqui tem de tudo!? O senhor está com cara de quem está comprando uma casa.

- Como você adivinhou ?!?

- É experiência senhor... Aqui existiu um cartório e as pessoas sempre aparecem. Mas, como eu estava falando, tem escritura de venda e compra, de cessão, de divisão, de doação, de permuta, de transação, de partilha; de emancipação, pacto antenupcial e de convivência; revogação, rescisão, hipoteca, quitação, novação, incorporação ... tem procuração, substabelecimento, renúncia...

- Pode parar! O meu imóvel fica no litoral e...

- Não tem problema: o modelo aqui tem espaço pro "ALVARAL", pro "LAUDÊMICO", pra "CINZA"... o que precisar. E eu posso ser testemunha, já conheço o senhor: como é mesmo o seu nome?... o senhor é casado com aquela... não?!? (...) é solteiro?!? (...) não?, então é viúvo!. E o vendedor..., é seu conhecido? Se for, arranjo testemunha pra ele também. Se o senhor conhece, ... se o senhor garante, ... digo que conheço também.

- O formulário é completo?... quanto custa? (...)

- Se precisar de escritura "mais elaborada", meu primo trabalha na "Faria Lima" com a "Rebouças", num estacionamento: lá tem mesa pra assinatura... e até impressora a laser.

- Ok! Eu vou para lá... não posso perder este negócio.

 

Pois é. Muitos me cobravam um final para essa história que, de certa forma, recusava-me concluir. Alguns riram, outros horrorizaram-se, o certo (e triste) é que ela não está muito longe da ficção. Confiram a pérola publicada no "Jornal da Tarde", de 24/03/1997, página 4-E:

 

... "A "Associação de Juízes para a Democracia" propõe a extinção dos cartórios. Segundo seu presidente, Urbano Ruiz, eles prestam serviços que nem sempre trazem segurança ao usuário e cobram caro, o que impede registros de nascimento, óbito e casamento, de compra de imóvel, com riscos para consumidores e distorções nas estatísticas do país. Para Ruiz, as prefeituras podem cuidar do registro de imóvel; o IBGE, dos registros civis; os bancos, das cobranças de títulos; as PAPELARIAS, do fornecimento de formulários- padrão; os Correios, das notificações."...

Pasmem! ... Que associação é essa e qual democracia eles pregam? Com a extinção dos cartórios somente afortunados poderiam ter o respaldo e segurança para concretizar um negócio: contratando serviços de seu advogado; enquanto os menos favorecidos, incautos, estariam à mercê de estelionatários e golpistas em geral.

 

"Vejo que hoje, neste século que é a aurora da razão, ainda renascem algumas cabeças de hidra do fanatismo. Parece que seu veneno é menos mortífero e que suas goelas são menos devoradoras. O sangue não correu pela graça versátil como correu há muito tempo pelas indulgências plenárias, vendidas no mercado. Mas o monstro ainda subsiste e todo aquele que buscar a verdade arriscar-se-á a ser perseguido.

Deve-se permanecer ocioso nas trevas? Ou deve-se acender um archote onde a inveja e a calúnia reacenderão suas tochas? No que me tange, acredito que a verdade não deve mais esconder-se diante dos monstros e que não devemos abster-nos do alimento com medo de sermos envenenados." ( 'Início da Razão', in "O filósofo Ignorante", de VOLTAIRE )

 

Nada mais se continha em dita escritura, aqui bem e fielmente transcrita, do próprio original, ao qual me reporto... assino e dou fé.

 

(a) Waldomiro de Paula Junior


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